O filme Querida, Encolhi as Crianças (1989), apesar de ser uma aventura infantojuvenil despretensiosa, reflete sutilmente valores tradicionais de gênero que reforçam uma estrutura machista. Diálogos, enquadramentos e dinâmicas entre personagens reproduzem estereótipos patriarcais – desde o pai autoritário e agressivo até a mãe compreensiva e resignada. Nesta análise, examinamos falas específicas e elementos do roteiro que reafirmam esses papéis de gênero, relacionando-os ao conceito de “tecnologias de gênero” de Valeska Zanello e discutindo como tais representações culturais contribuem para a perpetuação de uma cultura de violência.
Diálogos que Reforçam o Machismo no Filme
Várias falas dos personagens masculinos evidenciam atitudes machistas e expectativas de gênero tradicionais. Um exemplo marcante ocorre logo no início, quando Russ Thompson (o “Big Russ”, pai vizinho da família Szalinski) reclama do barulho das invenções do cientista Wayne Szalinski. Irritado, Big Russ ignora os apelos pacíficos da esposa (Mae) e parte para uma postura agressiva: “I’ll give him a break. I’ll break his arm!” – ameaça ele, insinuando que vai “quebrar o braço” do vizinho (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom). A cena tem tom cômico, mas normaliza a violência masculina como resposta para conflitos banais. A esposa tenta contê-lo dizendo “honey, you are much bigger than he is” (“querido, você é bem maior que ele”) (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom), indicando não só a desproporção da briga como também apelando à razão. Contudo, Big Russ desconsidera a cautela da mulher e continua a gritar pelo vizinho. Essa interação mostra o homem adotando o papel de agressor, enquanto a mulher assume o papel conciliador – dinâmica comum em culturas patriarcais, onde a voz feminina da razão é frequentemente ignorada pelo homem.
Outro diálogo revelador ocorre na mesa de café da manhã dos Thompson, expondo as expectativas rígidas de masculinidade que Big Russ impõe ao filho adolescente, Russ Jr. Prestes a levar o garoto para uma pescaria “entre homens”, Big Russ descobre que o filho foi cortado do time de futebol americano da escola. Em vez de confortá-lo, ele reage frustrado e imediatamente recorre ao discurso tradicional: relembra como, na idade do filho, ele próprio era capitão do time e jamais decepcionaria o pai (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom). Quando Mae comenta que Russ Jr. é pequeno demais para futebol – tentando proteger o filho da pressão – Big Russ nega veementemente: “He is not too small for football!” (“Ele não é pequeno demais para futebol!”) (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom). Em seguida, ele solta a frase emblemática: “If he wants to feel big, he should act big.” (“Se ele quer se sentir grande, que aja como grande”) (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom). Essa fala deixa claro o recado machista: em vez de acolher a vulnerabilidade do filho, o pai reforça que o menino deve “agir como homem” – ser forte, durão, esconder fragilidades – para merecer respeito. Russ Jr., abatido, baixa os olhos enquanto o pai ainda ordena que ele levante os cotovelos e melhore a postura (“Elbows up.”) (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom), num gesto de cobrança física e simbólica para que ele “endureça”.
Até mesmo entre as crianças há internalização desses valores. Quando os quatro jovens protagonistas acidentalmente ficam miniaturizados, o caçula Ron Thompson (filho de Big Russ) imediatamente busca afirmar dominância sobre Nick Szalinski (filho mais novo de Wayne). Ao discutirem de quem foi a culpa pelo incidente, Ron xinga Nick de “wimp” – gíria em inglês para “fracote” ou “mariquinha” – mandando-o calar a boca (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom). O uso casual de xingamentos que associam fraqueza a algo vergonhoso mostra como os meninos já reproduzem a polÃcia da masculinidade: para Ron, admitir medo ou erro é ser “covarde”, algo inadmissível para o garoto em contexto de provação. Esse tipo de linguagem, aprendida provavelmente pela influência do pai autoritário, reforça entre os meninos a ideia de que ser homem é não demonstrar fraqueza – e que qualquer um que o faça merece escárnio.
Percebe-se, portanto, que nos diálogos o filme promove visões estereotipadas de gênero: o homem adulto recorre à violência verbal e física como solução (ameaçar quebrar o braço, impor disciplina pelo medo), enquanto o menino aprende que deve suprimir emoções e provar sua “força” a qualquer custo. Já a mulher/mãe tenta apaziguar e empatizar – porém, suas falas tendem a ser silenciadas ou relativizadas pelos homens ao redor.
Personagens e Enquadramentos que Refletem Papéis Patriarcais
Os papéis desempenhados pelos personagens centrais reforçam uma divisão de gênero tradicional tanto em atribuições quanto em traços de personalidade. Wayne Szalinski, o pai que encolhe os filhos acidentalmente, é o protagonista inventor – um arquétipo masculino clássico (o gênio distraído). Embora Wayne não seja autoritário como Big Russ, ele também ilustra um padrão patriarcal sutil: está tão absorto em seu trabalho científico que negligencia as responsabilidades domésticas, sobrecarregando Diane, sua esposa. No início, descobrimos que Wayne e Diane discutiram na noite anterior e ela chegou a sair de casa para esfriar a cabeça (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom). Diane é corretores de imóveis (ou seja, também trabalha fora), mas ainda assim é ela quem cobra ordem na casa e cuida para que as coisas funcionem – por exemplo, ligando para lembrar o marido de tarefas (“não esqueça meus pedidos: pegar o vestido da Amy na lavanderia, os remédios de alergia do Nick…” (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom)). Essa dinâmica – marido focado na carreira e esposa acumulando funções familiares – ecoa o que Zanello identifica como lugar tradicional da mulher na família: “resignação e responsabilidade sobre as estruturas ideais de família” ( Tecnologias de Gênero e Dispositivo Amoroso nos filmes de animação da Disney | Revista Feminismos ), enquanto o homem usufrui de liberdade para perseguir suas ambições individuais. Diane encarna essa mulher que assume o dever de manter a casa e os filhos em ordem, mesmo quando também trabalha, algo naturalizado historicamente.
Do lado dos Thompson (a família vizinha), os papéis são ainda mais arquetípicos. Big Russ é apresentado como o pai provedor durão – ele planeja um fim de semana de pescaria “de homens” com o filho, valorizando atividades tipicamente masculinas. Sua linguagem corporal e enquadramentos destacam sua postura dominadora: frequentemente ele aparece em primeiro plano gesticulando de forma expansiva ou levantando a voz, enquanto Mae, sua esposa, surge ao lado tentando moderar as ações do marido. Mae desempenha a mãe mediadora e afetuosa – ela sabe dos sentimentos do filho (é a primeira a descobrir que Russ Jr. ficou de fora do time) e age como ponte emocional, amenizando conflitos. Porém, assim como Diane, Mae tem sua voz suprimida quando confronta o marido. Na cena do café, quando Mae tenta defender o filho (“ele é pequeno demais para o futebol”), Big Russ imediatamente invalida a opinião dela (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom). Esse desequilíbrio – o homem decide o que é melhor, a mulher é colocada em segundo plano nas decisões sobre os filhos – reflete a lógica patriarcal em que a autoridade paterna prevalece.
Os adolescentes também são retratados de forma alinhada a estereótipos de gênero. Amy Szalinski, a filha mais velha, é mostrada logo na primeira cena preocupada com assuntos românticos: ela fofoca ao telefone sobre um garoto possivelmente convidá-la para o baile e planeja encontrá-lo no shopping (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom). Ou seja, seu interesse inicial de personagem gira em torno de namoro e vida social, em contraste com Nick (seu irmão mais novo) que está empolgado desmontando bugigangas científicas com o pai. Essa diferença ilustra o que Zanello e Monteiro chamam de “dispositivo amoroso”, em que às meninas é atribuído um roteiro de vida voltado ao amor e relacionamento como fonte de realização pessoal ( Tecnologias de Gênero e Dispositivo Amoroso nos filmes de animação da Disney | Revista Feminismos ). Amy, apesar de enfrentar a aventura no quintal quando encolhida, cumpre esse roteiro: ela passa boa parte do filme de olho em Russ Jr. (filho do vizinho) e acaba vivendo um romance inocente com ele. Em uma cena crítica, Amy quase se afoga numa poça (uma situação de extremo perigo devido ao tamanho diminuto) e é resgatada heroicamente por Russ Jr., que lhe faz respiração boca-a-boca. O enquadramento enfatiza Russ tomando a iniciativa e salvando-a – literalmente o rapaz “herói” salvando a donzela em apuros. Depois disso, Amy olha para Russ com admiração renovada. Trata-se de uma representação clássica: o homem se prova protetor forte, enquanto a mulher é vulnerável e precisa ser salva, reforçando o imaginário romântico de dependência feminina.
Russ Jr., por sua vez, vive o arco do garoto inseguro que finalmente corresponde às expectativas de masculinidade do pai. Inicialmente ele teme decepcionar Big Russ – tanto que esconde do pai seu fracasso no futebol, confidenciando apenas à mãe. Porém, ao longo da aventura no quintal, Russ Jr. demonstra coragem (no duelo contra insetos gigantes, na travessia de obstáculos) e principalmente salva Amy, assumindo naturalmente a liderança do grupo de crianças. No clímax, quando todos são resgatados e revertidos ao tamanho normal, Big Russ testemunha as conquistas do filho e muda de atitude: ele orgulhosamente aperta o ombro de Russ Jr. (num gesto de aprovação silenciosa) e até o convida a fazer a prece na mesa do jantar – algo que antes ele reservava para si como chefe da família. Esse desfecho aparentemente traz reconciliação e aprendizado: Big Russ aprende a valorizar o filho como ele é, e Wayne ganha reconhecimento por sua invenção. Contudo, vale notar que são os homens que resolvem o conflito principal – Wayne consertando sua máquina para salvar as crianças, e Big Russ voluntariando-se bravamente como teste do raio para assegurar que é seguro reverter o encolhimento. As mães, embora presentes e aliviadas, atuam mais como espectadoras/apoio emocional na resolução. Assim, o filme termina reafirmando a centralidade das figuras paternas (o inventor genial e o pai protetor) e recompensando-os por sua atuação, enquanto as mulheres retornam ao papel de cuidadoras contentes (Diane servindo todos à mesa, Mae abraçando o filho). Os enquadramentos finais – a família unida em torno da mesa, com um peru gigante ampliado pela máquina como piada – simbolizam a restauração da “ordem familiar tradicional”, onde cada gênero reassume seu lugar convencional na hierarquia doméstica.
Tecnologias de Gênero e a Cultura de Violência
As situações descritas acima não são meras coincidências narrativas, mas sim refletem o que a psicóloga Valeska Zanello define como tecnologias de gênero: mecanismos culturais (filmes, mídias, discursos) que constroem e reforçam ativamente os comportamentos esperados de homens e mulheres. Segundo Zanello, os produtos midiáticos atuam como uma poderosa ferramenta nesse processo, expondo constantemente representações sociais diferenciadas para homens e mulheres ( Tecnologias de Gênero e Dispositivo Amoroso nos filmes de animação da Disney | Revista Feminismos ). No caso de Querida, Encolhi as Crianças, essa diferenciação é evidente: a masculinidade é associada à força física, bravura e até agressividade, enquanto a feminilidade é ligada à empatia, cuidado e romance. Tais mensagens funcionam como um “letramento de gênero” para o público – especialmente considerando que este filme é voltado para crianças e adolescentes. Desde cedo, os espectadores são ensinados, de forma sutil, sobre o que homens e mulheres “devem” fazer e sentir: meninos não choram nem fogem da briga (vide Russ Jr. se envergonhando de parecer fraco diante do pai, ou Ron chamando Nick de “maricas”), ao passo que meninas devem ser dóceis e dedicadas às relações (Amy focada no namorado e dependendo de Russ, as mães dedicadas à família).
Importante notar que essas representações não apenas reforçam estereótipos inofensivos – elas contribuem para manter aquilo que Zanello chama de violência estrutural de gênero. Em palestra sobre gênero e saúde mental, Zanello afirma que “gênero… são violências estruturais… o binarismo (homem/mulher) é uma construção histórico-cultural” (Pesquisadora Valeska Zanello apresenta jogo contra o machismo para rede de proteção à mulher — Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios). Ou seja, a própria forma como nossa cultura define masculinidade e feminilidade carrega em si violência, na medida em que restringe identidades e legitima relações desiguais de poder. No filme, podemos identificar essa violência simbólica de gênero nas pequenas dinâmicas: Big Russ intimida a família com seu temperamento (a ponto de Russ Jr. temer decepcioná-lo e esconder sentimentos), e isso é tratado como “normal” ou cômico, nunca seriamente questionado. Mae e Diane, mesmo quando discordam, acabam cedendo ou atenuando conflitos para agradar os maridos – um espelho de como muitas mulheres, socializadas para ser “pacientes e amorosas”, terminam por tolerar atitudes agressivas masculinas.
Quando a mídia retrata consistentemente o homem como autoridade que pode usar da força e a mulher como submissa/compreensiva que releva excessos, ela está reforçando os pilares de uma cultura que naturaliza a violência de gênero. Big Russ ameaçar bater no vizinho e isso ser jogado como piada comunica, em certo nível, que a agressividade masculina é quase caricata, mas aceitável. Da mesma forma, Russ Jr. conquistar respeito apenas após demonstrar coragem física passa a mensagem de que valor e “honra” masculinos dependem da capacidade de agir agressivamente ou de exercer controle. Esses conceitos estão na raiz de muitos comportamentos violentos no mundo real – por exemplo, a ideia de que “homem de verdade” resolve problemas na força sustenta desde brigas de bar até violência doméstica. Já do lado feminino, mostrar mulheres sempre indulgentes e centradas nos outros contribui para que muitas internalizem a culpa e a passividade, evitando confrontar abusos. Como aponta uma análise de Monteiro e Zanello sobre filmes da Disney, os recursos midiáticos tendem a (re)construir dispositivos que mantêm a mulher atrelada ao amor e à doação de si ( Tecnologias de Gênero e Dispositivo Amoroso nos filmes de animação da Disney | Revista Feminismos ) – o que, na prática, pode dificultar a quebra de ciclos de violência, pois a mulher aprende a se definir pela abnegação ao parceiro e filhos.
Em Querida, Encolhi as Crianças, embora a trama seja fantasiosa e divertida, os padrões históricos e socioculturais de gênero ali presentes servem para validar comportamentos desiguais: o pai que grita e manda é “assim mesmo”, o menino que não corresponde ao padrão esportivo é quem precisa mudar, a mãe que tudo suporta é “uma boa esposa”. Esses clichês atuam como “tecnologias de gênero” precisamente por disseminarem no imaginário popular que tais papéis são naturais. O efeito cumulativo de inúmeras obras com mensagens semelhantes é a perpetuação de uma cultura de violência – uma cultura em que a dominância masculina e a submissão feminina parecem parte da ordem normal das coisas, levando gerações a reproduzir essas relações de poder sem questioná-las.
Conclusão
A análise de Querida, Encolhi as Crianças sob a perspectiva de gênero revela que, por trás da fachada de comédia familiar, o filme reafirma vários elementos da cultura patriarcal. Pelos diálogos dos personagens e suas interações, identificamos pressupostos machistas – da exaltação da força e do controle pelos homens à expectativa de docilidade e suporte pelas mulheres. Esses elementos, ao serem naturalizados numa produção de entretenimento, operam como ferramentas de socialização de gênero (ou “tecnologias de gênero”, na conceituação de Zanello), ensinando e reforçando normas tradicionais. Conforme discutido, tais representações estão longe de serem neutras: ao contrário, elas reforçam uma lógica que normaliza hierarquias e violências – seja a violência explícita (física ou verbal, como as ameaças de Big Russ), seja a violência simbólica de silenciamento e desvalorização do feminino.
Desse modo, Honey, I Shrunk the Kids exemplifica como produtos culturais populares podem contribuir, ainda que involuntariamente, para a manutenção de padrões históricos de gênero que alimentam a desigualdade e a violência. Questionar criticamente essas representações – lendo nas entrelinhas as falas e enquadramentos machistas – é um passo essencial para desnaturalizar o machismo cotidiano. Ao contrapormos os diálogos do filme com conceitos como os de Valeska Zanello, enxergamos com mais clareza que não se trata “só de uma piada” ou “só de ficção”, mas de sintomas de uma estrutura que precisa ser transformada. Em última instância, reconhecer essas tecnologias de gênero em ação nos permite educar novos olhares e promover uma cultura menos tolerante à violência e mais comprometida com a igualdade.
Referências:
- Monteiro, C.; Zanello, V. Tecnologias de Gênero e Dispositivo Amoroso nos filmes de animação da Disney. Revista Feminismos, v.3 n.1, 2015. Disponível em: ( Tecnologias de Gênero e Dispositivo Amoroso nos filmes de animação da Disney | Revista Feminismos ) ( Tecnologias de Gênero e Dispositivo Amoroso nos filmes de animação da Disney | Revista Feminismos ). Acesso em 12 mar. 2025.
- Honey, I Shrunk the Kids. Dir. Joe Johnston. Disney, 1989. Transcript disponível em Moviepedia (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom) (Honey, I Shrunk the Kids/Transcript | Moviepedia | Fandom).
- Zanello, V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Apud TJDFT – Palestra “Jogando contra o machismo”, 2023 (Pesquisadora Valeska Zanello apresenta jogo contra o machismo para rede de proteção à mulher — Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios).